Dias atrás, durante um almoço de fim de semana,
a minha esposa e eu estávamos rememorando questões marcantes do passado, da
nossa infância, de lugares que recentemente foram revisitados pelos nossos
filhos ao visitarem o país onde nascemos depois de alguns anos, entendendo e reconstruindo
a nossa história.
Um daqueles lugares foi o Clube do bairro onde
ela nasceu, que naqueles anos de esplendor era um lugar muito bonito, altamente
frequentado pela vizinhança e onde as coisas aconteciam.
No país existia a tradição do Carnaval,
tradição esta que como outras tantas, foram abolidas por decreto de alguém que
achou que era nocivo ou que não devia ou poderia continuar existindo, mas que
um bom dia, sem nenhuma explicação, volta a ser como antes ou parecido e onde o
proibido se torna aceito.
Dentre as atividades que rodeavam as festas, uma
era bem singular, a escolha da Estrela e dos Luzeiros.
Uma competição que envolvia a todos, onde era
escolhida a garota mais bonita e seis acompanhantes, segundo o nível das
finalistas no concurso.
Muito antes mesmo da primeira eliminação do Carnaval
como evento, o citado concurso tinha proscrito. Alegava-se que isso trazia
diferenças e discriminação entre as mulheres, que era um método de coisificação
do sexo feminino.
Certamente, como toda sociedade hipócrita e que solapa o racismo, nunca uma negra ou mestiça foi eleita estrela a nível nacional e também não tenho registro de alguma que conseguiu semelhante feito a nível regional.
Certamente, como toda sociedade hipócrita e que solapa o racismo, nunca uma negra ou mestiça foi eleita estrela a nível nacional e também não tenho registro de alguma que conseguiu semelhante feito a nível regional.
Se por acaso alguma garota sem ascendência
saxônica e mesmo de beleza indiscutível teria a coragem de se apresentar, o
máximo que estaria disponível para ela seria uma posição de luzeiro. Os mais vorazes
críticos não concordarão comigo, mas a realidade não tem como ser reconstruída
e a história ainda que alguns se achem no direito de mudá-la, os fatos são imutáveis.
Havia detalhes curiosos ao redor do concurso.
Um deles refletia a crítica situação que sempre viveu o nosso país desde os
inícios do Processo e até os dias atuais. Na época, a questão da vestimenta era bem
mais complicada. Não existia venda de roupa praticamente, apenas algum que
outro modelo de confecção nacional cobria o corpo de todos os meus conterrâneos, que
sempre e em meio das dificuldades, ríamos e apelidávamos as peças como “todos-têm”.
No concurso, as candidatas não podiam vestir
roupas importadas, para evitar constrangimentos e diferenças notáveis entre as participantes,
dando vantagens competitivas a umas sobre outras. A maioria se apresentava com
vestidos costurados por mães, parentes ou amigas.
A minha esposa, que não é de olhos loiros e
dentes azuis, participou quando menina de um destes concursos no bairro onde
morava e o mesmo aconteceu naquele Clube do Bairro donde transcorriam as
sessões e torcidas pelas aspirantes. Era o sono e o pesadelo de todas as
meninas.
Finalizado o concurso, aquela linda menina que
depois teve a honra de virar a minha esposa (hahahaha) foi eleita uma das luzeiros.
Ela comentou com os nossos filhos que se sentia
orgulhosa, no seu delírio infantil e que nos dias no carnaval era desfilava,
num carro alegórico decorado com flores e uma estrela, onde cada menina tinha
um lugar e na medida em que passavam pelas ruas, o pessoal atirava confetes,
serpentinas, aplaudia e jogava beijos ao tempo que comentavam da beleza das
garotas.
Uma vez mais, se fez presente o problema do
entendimento de duas línguas próximas, mas diferentes.
Os meus filhos falam muito bem espanhol e
dominam a língua, mas há termos que nunca foram usados e desconhecem. A minha
esposa quando tentou explicar o meio de locomoção que transportava as
ganhadoras do concurso pelas ruas do nosso país, onde a língua oficial é o
espanhol, disse que era uma “Carroza”, termo muito parecido foneticamente com “Carroça”
e os meninos estranharam e começaram rir.
Ai eu entrei na brincadeira e disse: meus filhos, a sua mãe não nasceu égua, ela nasceu menina ainda que de vez em quando
dá uns coices quando fica brava ou quando me aproximo a noite. O problema é que
em Cuba os carros alegóricos são chamados assim.
Todos rimos inclusive a minha esposa, que
no início não gostou da brincadeira, mas acabou vencida pelo clima da descontração
e da confusão das palavras.
Eis um exemplo de "Carroza"
Eis um exemplo de "Carroza"
Para onde foi tudo aquilo, além das
recordações?
Nostalgias.
E não é dos bons tempos, senão simplesmente do
passado, do nosso passado, uma das poucas coisas que realmente nos pertence, ainda que para muitos, que estão por fora e desconhecem a nossa realidade, não seja grandes coisas.