segunda-feira, 30 de maio de 2016

Ela não nasceu égua!

Dias atrás, durante um almoço de fim de semana, a minha esposa e eu estávamos rememorando questões marcantes do passado, da nossa infância, de lugares que recentemente foram revisitados pelos nossos filhos ao visitarem o país onde nascemos depois de alguns anos, entendendo e reconstruindo a nossa história.

Um daqueles lugares foi o Clube do bairro onde ela nasceu, que naqueles anos de esplendor era um lugar muito bonito, altamente frequentado pela vizinhança e onde as coisas aconteciam.

No país existia a tradição do Carnaval, tradição esta que como outras tantas, foram abolidas por decreto de alguém que achou que era nocivo ou que não devia ou poderia continuar existindo, mas que um bom dia, sem nenhuma explicação, volta a ser como antes ou parecido e onde o proibido se torna aceito.

Dentre as atividades que rodeavam as festas, uma era bem singular, a escolha da Estrela e dos Luzeiros.

Uma competição que envolvia a todos, onde era escolhida a garota mais bonita e seis acompanhantes, segundo o nível das finalistas no concurso.

Muito antes mesmo da primeira eliminação do Carnaval como evento, o citado concurso tinha proscrito. Alegava-se que isso trazia diferenças e discriminação entre as mulheres, que era um método de coisificação do sexo feminino. 

Certamente, como toda sociedade hipócrita e que solapa o racismo, nunca uma negra ou mestiça foi eleita estrela a nível nacional e também não tenho registro de alguma que conseguiu semelhante feito a nível regional.

Se por acaso alguma garota sem ascendência saxônica e mesmo de beleza indiscutível teria a coragem de se apresentar, o máximo que estaria disponível para ela seria uma posição de luzeiro. Os mais vorazes críticos não concordarão comigo, mas a realidade não tem como ser reconstruída e a história ainda que alguns se achem no direito de mudá-la, os fatos são imutáveis.

Havia detalhes curiosos ao redor do concurso. Um deles refletia a crítica situação que sempre viveu o nosso país desde os inícios do Processo e até os dias atuais. Na época, a questão da vestimenta era bem mais complicada. Não existia venda de roupa praticamente, apenas algum que outro modelo de confecção nacional cobria o corpo de todos os meus conterrâneos, que sempre e em meio das dificuldades, ríamos e apelidávamos as peças como “todos-têm”.

No concurso, as candidatas não podiam vestir roupas importadas, para evitar constrangimentos e diferenças notáveis entre as participantes, dando vantagens competitivas a umas sobre outras. A maioria se apresentava com vestidos costurados por mães, parentes ou amigas.

A minha esposa, que não é de olhos loiros e dentes azuis, participou quando menina de um destes concursos no bairro onde morava e o mesmo aconteceu naquele Clube do Bairro donde transcorriam as sessões e torcidas pelas aspirantes. Era o sono e o pesadelo de todas as meninas.

Finalizado o concurso, aquela linda menina que depois teve a honra de virar a minha esposa (hahahaha) foi eleita uma das luzeiros.

Ela comentou com os nossos filhos que se sentia orgulhosa, no seu delírio infantil e que nos dias no carnaval era desfilava, num carro alegórico decorado com flores e uma estrela, onde cada menina tinha um lugar e na medida em que passavam pelas ruas, o pessoal atirava confetes, serpentinas, aplaudia e jogava beijos ao tempo que comentavam da beleza das garotas.

Uma vez mais, se fez presente o problema do entendimento de duas línguas próximas, mas diferentes.

Os meus filhos falam muito bem espanhol e dominam a língua, mas há termos que nunca foram usados e desconhecem. A minha esposa quando tentou explicar o meio de locomoção que transportava as ganhadoras do concurso pelas ruas do nosso país, onde a língua oficial é o espanhol, disse que era uma “Carroza”, termo muito parecido foneticamente com “Carroça” e os meninos estranharam e começaram rir.

Ai eu entrei na brincadeira e disse: meus filhos, a sua mãe não nasceu égua, ela nasceu menina ainda que de vez em quando dá uns coices quando fica brava ou quando me aproximo a noite. O problema é que em Cuba os carros alegóricos são chamados assim.

Todos rimos inclusive a minha esposa, que no início não gostou da brincadeira, mas acabou vencida pelo clima da descontração e da confusão das palavras.


                              Eis um exemplo de "Carroza"

Para onde foi tudo aquilo, além das recordações?

Nostalgias.

E não é dos bons tempos, senão simplesmente do passado, do nosso passado, uma das poucas coisas que realmente nos pertence, ainda que para muitos, que estão por fora e desconhecem a nossa realidade, não seja grandes coisas.