quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

VOCÊ NA FRENTE, SEMPRE!

Há uns tempos atrás, depois de mais de 30 anos de engenharia, de participar de incontáveis comissionamentos e pré-operações, pela primeira vez tive que ficar hospedado em um alojamento, que pertence a uma empresa, cujo nome até faz não muitos anos era um pouco extenso e acompanhado de “água com açúcar”, mas que depois decidiu simplificar e ficou só numa palavra, o que lhe daria maior facilidade de pronuncia nas diferentes línguas que a receberiam.

A estratégia de MKT deu certa e o nome, bastante conhecido internacionalmente, torna-se fácil de decorar e repetir por todos.

Hoje, essas quatro letras estão salvando o Brasil, que está submerso em uma crise económica, política, social, institucional, ... moral, sem precedentes, como nunca antes na história deste país.

Confesso não ter  visitado antes um alojamento de obras. Por sorte, sempre fiquei em hotéis, apart-hotéis ou apartamentos alugados. A vida dá muitas voltas. Eis eu aqui na Terra Prometida. 

Ao chegar ao lugar, me senti chocado, mas o aceitei em silêncio. Vim com uma carga de indisposição e predisposição impressionantes. Só consegui sentir semelhanças com campos de concentração que teria visitado mundo fora, mas nas condições económicas do momento, somente me restava agradecer à aquela empresa de quatro letras, por ter gerado empregos, subcontratar a empresa onde trabalho e permitir pagar minhas contas e dar uma condição de vida melhor para minha família.



Com o decorrer dos dias comecei a ver as vantagens de estar naquele lugar e reparei que não era nada de ruim. Tinha mais aspectos positivos do que negativos. Muita área verde, campos para a prática de atividades esportivas, salas de jogos, academia bem equipada. As construções eram rústicas, mas a empresa nossa, visando dar o melhor conforto, mobiliou os quartos que eram individuais e com banheiro, de uma maneira que não havia motivo algum para reclamar.



O ambiente que se respirava em aquele lugar era bem sadio. A maioria das pessoas se cumprimentava ou fazia por responder a um "bom dia" ou 'boa noite", ainda que de forma tímida ou peculiar.

Era fácil fazer amizades e com pessoas de extrações sociais bem diferentes, indivíduos com os quais a gente não se relaciona com frequência e começar a descobrir novos mundos e novas realidades, interessantes, necessárias.

Pelo fato de não ser permitida a ingestão de bebidas alcoólicas, nem a entrada de pessoal alheio, problemas de brigas, relacionamentos difíceis, etc., não eram comuns, nunca presenciei ou tive conhecimento de algum, pese a que o 95% ou mais das várias centenas de pessoas que habitávamos o lugar, éramos homens.

Quando fiz o check-out senti um pouco de nostalgia. Reconheço que lá eu fui feliz.

Agora teria que morar num hotel na cidade, com incomparavelmente melhores condições, mas estaria exposto a outras situações que no alojamento, ao que carinhosamente apelidamos de “Muquifo” pela primeira impressão que passou, tinha esquecido, tais como violência, discriminações, problemas com a segurança, etc.

A quantidade de gastos pessoais aumentaria. No “Muco” a alimentação, lavanderia, academia, água para beber, etc., estavam incluídos. Agora isso todo ficaria pela minha conta.

Falei sobre a facilidade de fazer amizades naquele lugar, mas curiosamente, só um senhor gordinho, baixinho e de cara fechada, costumava me encarar e nunca respondia quando o cumprimentava. Me observava de longe.

Não atinava a entender qual era o problema dele, mas também não dava importância. Era um, dentre tantos, que se tornava insignificante, mas não deixava de ser estranho o comportamento dele.

A nossa empresa instalou em todos os quartos dos funcionários um sistema de televisão por satélite, para o lazer de cada um dos colaboradores. Quando o representante do provedor chegou, disse que não precisava instalar uma nova antena porque havia outras próximas ao meu quarto e as mesmas tinham sido instaladas pela companhia onde ele trabalhava.

Não concordei com essa posição e repassei este parecer para minha empresa, mas não tomou nenhuma providencia pese a estar pagando por uma antena também, segundo rezava no contrato.

O sujeito foi lá, de uma antena que já existia, puxou um cabo até o meu quarto, furou a parede e horas depois o mundo se abriu para mim na tela da TV.

Até ai, tudo bem.

Os dias continuavam passando e toda vez que coincidia ou topava com aquele individuo gordinho, baixinho, de cara fechada, de abdômen pronunciado e de pele no rosto pouco lisa, era recebido com um olhar atravessado.

Um bom dia, o sinal de TV deixou de chegar até o meu receptor e pedi ajuda a um dos bons amigos que fiz por lá, que se entendia com esses assuntos de antenas e descobriu que alguém tinha soltado o meu cabo.

Lá foi o meu amigo, ao qual uma vez apresentei o meu projeto de auto-canonização sem pararmos de rir, reestabeleceu a conexão e a felicidade voltou.

E o senhor continuava a me olhar com cara feia.

Até que um bom ou mal dia, alguém bateu na minha porta tirando satisfação por eu estar usando de maneira indevida ou roubando o sinal de TV dele.

Adivinhem quem era o agraciado?

Acertaram, era ele, o senhor gordinho, baixinho, de cara fechada, de abdômen pronunciado e de pele no rosto pouco lisa.

Ai eu expliquei o que vocês já conhecem sobre que os dois éramos vítimas de uma empresa pouco séria e que fez a instalação paga, como se fosse um clássico “gato”.

Ele não soube como me pedir desculpas. Ficou visivelmente constrangido.

A falta de comunicação, a ausência de diálogo teria provocado situações bem desconfortáveis.

Os dias passaram e continuei assistindo televisão sem problemas.

Agora entendi porque me olhava daquele jeito. Talvez pensava que eu seria um neguinho safado e ladrão.

O dia que apareci no alojamento para fechar o meu contrato e cancelar o crachá, o senhor se aproximou de mim e me disse: há dias estou-te procurando, peço para me dizer quando for sair do alojamento, para não cancelar o meu contrato de TV por satélite antes e não te prejudicar.

Agora a gente se cumprimenta e sorri.