Quando cheguei ao Brasil há alguns anos, eu era
bastante jovem, inexperiente, menos vivido do que sou hoje e passei por algumas
experiências inesquecíveis, por vezes engraçadas, como a que contarei a seguir,
mas que me deixaram com a cabeça cheia de minhocas durante um bom tempo.
A empresa que me contratou me orientou a procurar
um lugar para morar numa região nobre da cidade, visando a minha segurança e
conforto.
O colega que veio comigo na “missão” e eu, alugamos
um apartamento num bairro muito bom de Belo Horizonte, tranquilo, calmo, de bom
nível, onde todas ou a maioria das pessoas se movimentavam em condução própria,
mas nós, simples engenheiros que estaríamos supostamente por aqui durante um
período consideravelmente curto e sem recursos para adquirir carro, fazíamos
todas as nossas viagens usando o transporte público.
Aquelas ruas do bairro, que durante o dia esbanjavam
calmaria, à noite se transvestiam. Eram bem escuras, solitárias e o lugar
idôneo para se aglomerarem muitos travestis e seus múltiplos clientes.
Antes da minha vinda a este país, ainda que já tivesse
visitado outros países, nunca fiquei próximo de nenhum travesti. Sinceramente,
não tinha uma noção certa do que eram. No meu país no existiam.
Também, nunca tive aproximação nem contato com
prostituição de rua. Era outra coisa que no meu país de origem, não era usual, para
não dizer que não existia.
Sempre que voltava a noite para casa, procurava
faze-lo de táxi, porque eram frequentes os assaltos noturnos e não pretendia me
relacionar ou misturar com aquelas pessoas, naquele ambiente, que sem o intuito
de criticar, estava com a certeza de que nada tinha a ver com os meus
interesses e o meu estilo de vida.
Um dia, quando já estava começando a escurecer,
eu voltava para casa. Estava vindo de ônibus e o mesmo me deixava a pouco mais
de dois quarteirões de casa e percebi que uma daquelas meninas, estava fazendo
xixi na rua, em pé e com um “membro” masculino para fora. Só sei que fiquei
surpreso. Se houve algum outro sentimento paralelo como raiva, medo, constrangimento,
não saberia dizer. Apressei a marcha e me enfiei dentro do meu apartamento.
Mais tarde comentei com o meu colega na
residência, que por sinal era um senhor mais velho e queria saber o que ele achava
daquilo tudo. Ele, com muita naturalidade me disse que já sabia que eram homens
vestidos de mulheres e que se dedicavam a se prostituir com outros homens, que
tinham fantasia por um gênero inexistente, complexo e integrado, por denominar
de alguma maneira.
Falou ademais que já tinha conversado com
alguns deles e que eram bacanas.
Eu não questionei suas observações, por
respeito aos anos e a opinião alheia, mas o tempo encarregou-se de corroborar
as minhas suspeitas sobre a qualidade humana das pessoas que ele catalogava de
legais, sem querer ser absolutista, generalizando e dizendo que todo travesti é
uma má pessoa.
Dias depois, quando cheguei a casa e sem ser
ainda muito tarde, estava só começando a escurecer, encontro meu colega em
casa, assustado, acuado, tremendo e ao perguntar o que tinha acontecido me
informou que um daqueles sujeitos legais, junto com outro cara vestido de homem
o “abordaram”, machucaram e tiraram todo o dinheiro dele.
A partir daquele dia, tomou a decisão,
provavelmente sábia para ele, de não conversar com estranhos na rua e sair só
com o dinheiro necessário para as atividades fundamentais.
Uma semana depois, foi novamente atacado e
ingenuamente debochou na cara de assaltante que não tinha dinheiro e que dessa
vez não se aproveitaria dele. Aquela atitude foi funesta. Ele apanhou muito e
ameaçaram que se da próxima vez não levasse dinheiro, iriam feri-lo mais.
O senhor que morava e trabalhava comigo entrou em pânico e me implorou para
começarmos a procurar outro lugar para morar. Duas semanas depois já estávamos
instalados em outro apartamento, na região central da cidade.
Mas antes da retirada, uma tarde, quase noite, estava passando
por aquelas ruas para poder chegar a casa quando um daqueles cidadãos me propõe: “E
ai, bonitão, quer fazer um programa”?
Aquela proposta deixou-me paralisado, dentre outros motivos, porque não me acho bonitão e também porque nunca na minha vida, alguém com voz grossa e confusa ao mesmo tempo, teria-me abordado desse jeito. Só atinei
a acelerar o passo e abrir o portão de acesso ao prédio.
Na época, eu tinha pouco domínio da língua portuguesa e praticamente
nenhum das gírias.
Eu sou engenheiro de automação e a minha
atividade fundamental naqueles tempos era programar.
Daí, eu fiquei grilado
pensando que aqueles travestis tinham indagado sobre mim e sabiam que eu fazia
programas e por esse motivo pediu-me para fazer um programa, querendo puxar papo e entrar em confiança.
Durante vários dias me mantive preocupado e me
perguntando, como eles souberam sobre mim. Até fiquei de mal com o síndico,
pensando que era fofoqueiro e tinha passado as informações para alguém. Passados alguns dias comentei com um colega da firma, que era mais próximo da gente e subitamente começou rir.
Ele me explicou que na fala popular, a
expressão fazer programa, distava muito do que eu fazia e me passou o
significado exato e a intenção da proposta.
Fiquei mais calmo.
Depois soube que eu era um garoto de programa,
mas ao mesmo tempo não era um “garoto de programa”.
Sempre que conto essa história para as pessoas
e depois de terem passado tantos anos, sinto um arrepio lembrando o desconforto
daqueles dias e a vergonha pelo meu desconhecimento.
Hoje, numa nova fase dentro da engenharia, como
resultado da experiência acumulada e do perfil da vaga que ocupo, não costumo
programar, mas ocupo parte do meu tempo em ensinar a programar a especialistas
mais jovens.
Em tom de brincadeira, alguém (o amigo VP) me disse que eu
não era mais um garoto de programa, senão um aliciador, um cafetão da vida.
Por cima disso, tenho que rir.
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